• Natacha Cortêz
Atualizado em

Há uma cena que consumiu os pensamentos de Joelma nos últimos 39 anos: “Ia dar 6 da manhã, minha mãe costurava na sala de casa enquanto eu olhava pela porta do quarto entreaberta. Ela vira o rosto e percebo ele todo machucado. As lágrimas caem e ela, incansável, não deixa de costurar”. A cantora tinha apenas 5 anos, mas já podia entender o porquê do estado da mãe. Naquela madrugada, o pai havia chegado bêbado da rua mais uma vez, tirado Maria de Nazaré da cama e a agredido até que se cansasse de esmurrá-la. Como uma forma de fugir da dor, e ainda porque tinha costuras para entregar na tarde seguinte, a mãe de Joelma se punha a trabalhar.

Joelma  (Foto: Coletivo Amapoa)

Joelma (Foto: Coletivo Amapoa)

A novela de horror em que a cantora esteve inserida quando criança teve fim no instante em que o pai abandonou a mulher e os sete filhos na cidade onde moravam, Almeirim, no Pará. Joelma da Silva Mendes tinha 8 anos quando José saiu para trabalhar e não voltou mais. A ausência paterna “trouxe certa paz”, reconhece, mas não apagou o ranço da violência que ela vivenciou dentro de casa. “Alimentei o ódio pelo meu próprio pai desde aquela noite em que vi minha mãe com o rosto surrado. Nunca esqueço que passei boa parte da infância achando que podia perdê-la a qualquer momento em que ele bebesse demais.”

MC Quero saber sua criação, da sua família. Você nasceu numa cidadezinha no Pará. Tinha quantos irmãos?
JSM Nasci em Almeirim. Fica no Baixo Amazonas. O Pará é muito grande, então minha cidade fica distante da Capital. São 36 horas de navio até Belém. Minha mãe era costureira. Se chama Maria de Nazaré da Silva Mendes. E meu pai, José Benahum Mendes. Éramos em sete filhos. Tive uma infância que me salva muitas vezes dos meus momentos turbulentos. Eu era um passarinho fora da gaiola. Fui criada na rua, andando só de calcinha. Porque no interior a gente só passa a usar a parte de cima quando o peito começa a desenvolver. Minha vó tinha um quintal enorme com todo tipo de fruta. Passava a tarde toda subindo naquelas árvores.

MC Foi nessa idade que começou a perceber que sua mãe não estava bem?
JSM É. Ali em casa, os vizinhos, todo mundo percebia. Tem uma cena que me marcou a vida inteira. Eu tinha uns 5 anos. Meu pai chegou em casa 3 da manhã e tirou minha mãe da cama, já espancando ela. Geralmente ele fazia isto: batia nela, ia para o nosso quarto, onde estavam todos os filhos, e quem ele pegasse, apanhava também. A gente saía correndo para a casa dos vizinhos e eles acolhiam a gente. Então todo mundo sabia na rua. 

MC Quando ele saiu de casa?
JSM Eu tinha 8 anos. Saiu para trabalhar e não voltou mais. Não perguntei isso para os meus irmãos, mas pra mim foi um momento que me trouxe paz. Dentro de mim eu sabia que se ele continuasse ali, ou mataria ela ou um de nós.

MC Hoje, você está com 44 e muito tempo se passou. Já deve ter se perguntado por que ele fazia isso. Conseguiu ter essa resposta?
JSM Não consegui. Mas acredito que ele era frustrado. Que não conseguia evoluir em trabalho nenhum. E a minha mãe, apesar de ter um trabalho humilde, comprou a casa e mobiliou, ela que botava comida na mesa. Desde a adolescência, trabalhava. Além de costurar, fazia comida, tinha uma função dentro da igreja, tocava sanfona, regia um coral. Fazia muitas coisas ao mesmo tempo. Se hoje sou cantora, é porque aprendi com ela. Ou seja, mesmo sofrendo essa violência, era uma mulher alegre, que nunca parou.

Joelma (Foto: Reprodução Instagram)

Joelma (Foto: Reprodução Instagram)

MC Parece a sua história com o Chimbinha.
JSM Parece muito. Meu pai e ele bebiam. Porque era assim: [Chimbinha] era uma pessoa completamente diferente quando não botava bebida na boca. Era calmo. Mesma coisa com meu pai. Então, os dois são homens que precisam de ajuda. Mas só eles mesmos podem se ajudar. Ninguém pode fazer isso por eles. Por isso, não sinto pena deles. São responsáveis pelos seus feitos.

MC Sua mãe nunca mais se casou?
JSM Nunca. Nem se envolveu com outro homem.

MC Como ficou sua casa quando seu pai saiu?
JSM Minha mãe ficou doente pouco tempo depois e foi morar em uma vila a quatro horas de barco de Almeirim. Ela não estava bem. Tinha uma dor de cabeça muito forte. E precisava de um lugar tranquilo para ficar, que tivesse muito silêncio. Está lá até hoje.

MC Todos vocês foram?
JSM Não. O mais velho e a mais velha já estavam casados, e a mais nova foi com ela. Então ficamos eu e mais um irmão, pra estudar. E logo que ela saiu aconteceu uma tragédia: dois de meus irmãos foram assassinados. Por isso, sobre o abandono do meu pai, vejo outro lado da história. Apesar de toda a violência, tinha um certo controle dentro de casa. Depois que ele foi embora, é como se a minha mãe perdesse aquele controle sobre os filhos.

MC Você voltou a falar com seu pai?
JSM Dois anos atrás, na época do meu primeiro DVD solo, liguei para pedir perdão.

MC Por quê?
JSM Comecei a estudar a bíblia, ler sobre ódio. Entendi que essas coisas ruins que você guarda não te deixam em paz. Pedia para Deus tirar esse sentimento ruim que tinha pelo meu pai. Até que consegui ligar para ele, que disse: “Não é você que precisa pedir perdão, sou eu. Porque fiz muito mal pra vocês, pra sua mãe”. A gente chorou e confessei: “Não, você não está entendendo. Eu tinha um sentimento horrível por você”. 

MC E, diferentemente da sua mãe, já chegou a namorar?
JSM Já! Estou aberta. Solteira, mas feliz. E apaixonada também. Por mim! Estou me cuidando mais, tenho tempo para mim, acho que estou mais bonita.

BELEZA: AROLDO VELLANY / STYLING: MARIS TAVARES / PRODUÇÃO-EXECUTIVA: VANDECA ZIMMERMANN